Quae est ista quae ascendit de deserto, deliciis affluens, innixa super Dilectum suum? Quem é esta que sobe do deserto cheia de delícias e apoiada em seu Amado?

domingo, 6 de janeiro de 2013

A Igreja não tardou para condenar o Liberalismo



 
G.-C Rutten. O. P.

A Doutrina Social da Igreja, segundo as Encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno, 1947, Agir, Pág. 32-46
 

Mais do que nunca é necessário saberem os nossos militantes provar, por textos indiscutíveis e fatos precisos, que, para denunciar os nocivos resultados do individualismo do último século, os católicos sociais não esperaram que o socialismo se tornasse poder ameaçador. Para eles respingamos, portanto, na história do século passado, alguns fatos particularmente sugestivos.

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     Chefe incontestado do movimento social católico na Alemanha foi o bispo von Ketteler, contemporâneo de Marx e Lasalle.

     Desde 1848, ano da publicação do Manifesto comunista, Mons. von Ketteler pronunciou na catedral de Mogúncia os seus dois célebres sermões sobre a propriedade, dos quais damos uma súmula no capítulo seguinte.

     No seu discurso de 25 de julho de 1869, perante um auditório de operário da zona industrial do Main, assim dizia: “O caráter fundamental, que dá importância e significação ao movimento operário, constituindo, para bem dizer, a sua essência, é a tendência para a associação operária que tem por fim pôr a união das forças ao serviço dos interesses dos operários. A religião só pode apoiar tais associações e desejar que elas surtam efeito em prol da classe operária”.

     Em seguida, o bispo de Mogúncia examinou cada uma das reivindicações que os operários deverão fazer triunfar pela força dos agrupamentos profissionais:

      “A primeira reivindicação da classe operária é um aumento de salário correspondente ao valor real do trabalho... A religião exige que o trabalho humano não seja tratado como mercadoria, nem avaliado pura e simplesmente segundo as flutuações da oferta e da procura.

      A segunda reivindicação da classe operária é a diminuição das horas de trabalho... Em toda a parte onde o tempo do trabalho exceda os limites que impõem a natureza e o interesse da saúde, os operários têm direito bem fundado de combater, mediante ação comum, semelhante abuso do poder capitalista...

      A terceira reivindicação da classe operária visa obter dias de descanso... Neste ponto a religião não só está convosco, mas muito antes de vós fez prevalecer à necessidade desses dias... Também a tal respeito os princípios da economia social e os partidos que os seguem incorreram em crime que branda realmente vingança ao céu e não cessam de cometê-los todos os dias... O tempo de descanso deve ser computado no do trabalho, tanto quanto em razão mesmo deste, o descanso se tornar necessário e se impuser como condição do trabalho a fazer.

      Uma quarta reivindicação da classe operária é a proibição de trabalharem as crianças durante a época em que ainda são obrigadas a frequentar a escolas.  Julgo que semelhante trabalho das crianças é monstruosa crueldade do nosso tempo. Equiparo-o ao assassínio, a fogo lento, do seu corpo e da sua alma...

      A quinta reivindicação da classe operária tende a excluir das fábricas as mulheres e, sobretudo as mães de família. A religião exige que a mãe passe o dia em casa a fim de desempenhar a sua alta e santa missão para com o homem e os filhos.

      Há um sexto postulado: a moça solteira também não deveria ser empregada nas fábricas.”

     O bispo acrescentou, entretanto, que segundo o seu intento, este postulado não implicava uma indicação absoluta, sem exceção no que concerne às moças solteiras; mas pedia a todos os católicos que se associassem energicamente ao movimento tendente a salvaguardar a moralidade da juventude nas fábricas e oficinas. Era para a classe operária “uma questão de honra e um dever imposto pela religião.”

     Após haver enunciado as seis reivindicações, o bispo timbrou em fazer notar que não esgotara o assunto. Quis ater-se às reformas que realizáveis mais imediatamente lhe pareciam. Concluiu o discurso com a enumeração das obras que têm por fim facilitar a economia, a aquisição duma pequena propriedade, a instituição, enfim, de cooperativas operárias não só de consumo como mesmo de produção.

     No mesmo ano, Mons. von Ketteler apresentava à assembleia dos bispos alemães em Fulda um relatório em que as mesmas idéias eram expendidas não menos vigorosamente e que concluía pela indicação das medidas de proteção legai que os católicos do Centro não tardariam em fazer votar. O relator declarava sentir ter constatado que o clero, na sua mor parte, não estava bastante consciente da gravidade do mal-estar social e, portanto, convir, antes de tudo, iniciar os jovens clérigos nos problemas sociais.

     Confrontando os textos de Ketteler com os da Encíclica “Rerum Novarum”, compreende-se que Leão XIII, numa conversa com o Snr. Decurtns, tenha chamado o bispo de Mogúncia “seu ilustre precursor”.

     O principal continuador da obra do Mons. von Ketteler foi o cônego Hitze, que, após o falecimento de Windthorst, tornou-se um dos chefes do Centro alemão. Hitze resumiu o programa social dos católicos do seu país numa brochura publicada no começo de 1880 sob o título “A quintessência da questão social”. A questão social, ao seu ver, consiste essencialmente “em se procurar uma organização social que corresponda às condições modernas da produção, tal qual a organização social da idade média correspondia às condições em que se achava, então, a produção nas cidades e aldeias”. Hitze assinala o perigo da produção que denomina anárquica, isto é, “que ultrapassa consideravelmente  as possibilidades de consumo... O verdadeiro senhor nas nossas sociedades é o capitalista, porque todos – industriais, empresários, patrões, empregados e operários – estão a mercê do capital. A solução deve ser buscada na organização social das profissões. É mister tornar menos precária a situação dos assalariados, criando-se maior reciprocidade de deveres, maior solidariedade entre patrões e operários. A nossa época, que se proclama democrática, não pode admitir que o operário continue a ser uma mercadoria que se compra ou vende segundo as cotações do mercado”.

 

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     Na Áustria, o programa do barão Vogelsang preconizava, há mais de cinquenta anos, o seguro social, a fixação legal de salário mínimo e do juro de capitais que pelos respectivos donos não são aplicados diretamente a alguma obra de produção.

     O caráter radical deste programa explica-se pelos abusos intoleráveis da usura que então exerciam os judeus, nomeadamente na Galícia e na Morávia.

     No conceito de Vogelsang e de seus amigos, o único remédio eficaz para a decomposição da sociedade era a organização corporativa obrigatória de todos os ofícios ou profissões. A sociedade  - ponderavam eles – não deve ser uma simples justaposição de indivíduos, senão uma federação de coletividades ou de agrupamentos sociais. O voto não deveria representar um conjunto de interesses individuais, mas ser a expressão dos grandes interesses sociais.

     Desde 1883, o grupo dos católicos austríacos fazia votar o regime da corporação obrigatória para a pequena indústria. A increpação, que lhes faziam, de quererem voltar à antiga feudalidade, Vogelsang e seus amigos obtemperavam: O que se chama abusos feudais são as usurpações da força bruta, os excessos do poder, as iniquidades de toda a sorte que certos senhores cometeram. Se procurarmos, em compensação, os princípios do regime feudal, podemos enuncia-lo mais ou menos deste modo: É pelo implemento contínuo do dever social que se justifica o exercício contínuo do direito individual; não se é senhor senão para servir àqueles que o não são; a proteção do fraco é a condição do poderio e o resgate da grandeza; a propriedade, enfim, é menos uma riqueza do que uma função. Numa palavra, não se trata de restaurar a sociedade da idade média, mas de inspirar-nos, para reorganizar a sociedade atual, no ideal, no ideal social dos séculos de fé (1).

 

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     Na Suiça foi um católico fervoroso, Decurtins, lente da Universidade de Friburgo, que teve a iniciativa da primeira conferência internacional para a proteção dos trabalhadores, conferência que no ano de 1890 realizou-se em Berlim, a pedido do imperador da Alemanha.

     Em longa memória enviada ao Parlamento Federal suisso, Decurtins afirmou que somente a legislação internacional concernente à proteção do trabalho podia abrir caminho para a luta contra a anarquia da produção. “Justamente porque o mercado da mão de obra e a própria indústria são coisas internacionais, os direitos do trabalho não poderiam por mais tempo continuar detidos no seu desenvolvimento pelas barreiras que separam as nações”.

     A Conferência em Berlim, na qual a Santa Sé foi representada por Mons. Kopp, príncipe-bispo de Breslau, quase não teve resultados imediatos, mas ficou ventilada a questão e dado o impulso. Já nenhuma influência era capaz de sustar os progressos duma reforma reclamada simultaneamente pela justiça e pelo interesse comum.

 

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     Na França, o conde de Mun e o marquês de La Tour du Pin defenderam, desde 1875, na revista “L’Association Catholique”, as idéias caras a todos os católicos sociais. A citada revista é fonte preciosa de documentos para os historiadores do movimento social. Nela encontra-se, entre outros, o texto completo duma comovente carta dirigida em 1845 por Mons. Rendu, bispo de Annecy, ao rei da Sardenha. Este prelado, denunciando os abusos de que era testemunha, declarava:

     “A expansão da indústria tem produzido abusos de tal forma odiosos que é preciso remontar até ao paganismo para deparar semelhante dureza e desprezo da humanidade. É mesmo de estranhar que a opinião, ou o que assim se convencionou chamar, não reclame contra uma desordem que arremete contra a sociedade como a vaga impelida pela tempestade vinda do meio do oceano. Grande zelo manifestou-se em prol da abolição da escravidão...; mas ninguém ousa propor que se aplique um curativo à chaga mais dolorosa e repugnante da humanidade. Ouvem bem os gritos que ela faz os desgraçados soltarem, mas calam-se porque temem o poder dos que os comprimem para que deles saia ouro.(2)”

 

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     A história do movimento social do século passado relata poucos episódios mais significativos do que as intervenções do Cardeal Manning em 1889 por ocasião da greve dos estivadores de Londres e do Cardeal Gibbons, de Baltimore, em 1887, a favor dos Cavalheiros do Trabalho.

     Relatando o primeiro destes episódios, o Padre G. Guitton escreveu que “ante os fatos e algarismos aduzidos pelo Cardeal, era difícil negar que se justificavam as reivindicações dos grevistas. Destes, porém, se tinham assenhoreado alguns agitadores, entre outros o famoso John Burns, para exacerbar as paixões.

     Ceder seria covardia, traição da ordem social. A isto o octogenário não hesitou em obtemperar que não cedendo o que se faria era apenas fornecer novo alimento ao incêndio de ódios e que os único fundamento da verdadeira ordem social é a prática da justiça”.

     “Mas, my Lord, objetavam-lhe, é socialismo o que fazeis”. E o Cardeal renovando sem saber o dito de Leão XIII a La Tour du Pin, declarava: “Não sei se para vós é socialismo. Para mim é puro cristianismo” (3)

     Certos tópicos das conferências, feitas pelo Cardeal Manning em 1874, sobre os direitos e a dignidade do trabalho, ficarem célebres. Lembremos o mais conhecido:

     “Se o fim da vida é multiplicar as varas de casimira e de algodão, se a glória da Inglaterra consiste em produzir tais artigos e outros similares na maior quantidade possível e pelo mais baixo custo, então avancemos no caminho em que estamos. Ao contrário, se a vida doméstica dum povo é a verdadeira vida, se a paz e a honra do lar, se a educação dos filhos, os deveres de esposa e de mãe, os deveres de marido e de pai estão inscritos numa lei natural de outra importância que a de qualquer lei econômica, se todas estas coisas são sagradas ao inverso das que se vendem no mercado, então- declaro – cumpre agir consequentemente. Se, em certos casos, a não regulamentação do trabalho conduz a destruição da vida doméstica, à negligência da educação dos filhos, se transforma as mulheres e as mães em máquinas vivas, os esposos e os pais (perdoem-me a palavra) em bestas de carga que levantam antes do sol e à noite voltam ao pouso extenuados pela fadiga e mal tendo força para comerem um pedaço de pão e a tirarem-se a um grabato para dormir: a vida de família não existe mais e neste andar não podemos continuar. Sei que abordo um assunto difícil, mas creio ser preciso encará-lo calmamente, com justiça e vontade bem firme de pôr o trabalho e seus lucros em segundo plano, a moralidade e a vida de família no primeiro!”.

     E numa carta a Mons. Doutre loux, bispo de Liége, o Cardeal Manning acrescentava: “Fazer passar o trabalho e o salário antes das necessidades da vida humana e doméstica e solapar a ordem estabelecida por Deus e pela natureza, é arruinar a sociedade humana no seu princípio vital. A economia da indústria é regida pela suprema lei moral que determina, limita e confere as suas operações”.

     Alguns anos mais tarde, um discípulo do Cradeal Manning, Mons. Bagshave, bispo de Nottingham, escrevia:

     “As classes abastadas falam em caridade, mas se quisessem restituir aos pobres o que a estes devem em rigorosa justiça, veriam logo que as somas devidas são infinitas superiores às suas pretensas caridades”.
     “Um governo não pode, certamente, considerar-se justo quando tolera que num país, como a Irlanda, onde os campônios se consomem na mais dura miséria, doze milhões de acres de terras sejam entregues a pastos pelo capricho dos Lords, enquanto sobre vinte milhões de acres de terras irlandesas há apenas três que dão produtos próprios para a alimentação do homem”. (4).

     Eis dois extratos duma memória enviada pelo Cardeal Gibbons ao Cardeal Simeoni, Secretário de Estado de Leão XIII em defesa da “Associação dos Cavalheiros do Trabalho” que o arcebispo de Québec julgara dever condenar: “Se muitos bispos se inquietam com as tendências, segundo lhe parecem, revolucionárias das novas associações, outros em número não menor, dentre os quais o Cardeal Manning e eu mesmo, alarmam-se igualmente ante o perigo que corre a Igreja de ser apresentada em nossa época como aliada dos poderosos e ricos e adversária dos fracos e pobres, porque tal aliança, embora aparente, não só causaria inaudito mal à Igreja como também subverteria toda a nossa história. Nunca, ao nosso ver, semelhante coisa deve acontecer. O único poder do mundo, que há quase dezoito séculos tem sido protetor das classes pobres e dos fracos, não iria abandoná-los na hora da angústia. Mui sabiamente o próprio Cardeal Manning ponderou: “As condições em que ora se acham as classes inferiores não podem durar mais; sobre tais alicerces é impossível que algum edifício subsista”.

     E sabido que Leão XIII anuiu à tese do Cardeal Gibbons.

 

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     No seu livro “Vingt-cinq annés d’Action Sociale”, o snr. Verhaegen rememorou os primórdios do movimento democrático cristão na Bélgica.

     Durante os sessenta primeiros anos da nossa independência nacional, a atividade dos católicos belgas é inteiramente absorvida pelas obras de ensino, de patronato e de beneficência. Todavia, a revista “L’Economie sociale” publicou uma série de artigos em que um industrial católico, o snr. M. J. De Jaer, assinalou o perigo: “Enquanto os socialistas seguem em toda a parte um idêntico sistema de propaganda, a burguesia em toda a parte assume para com eles a mesma atitude inábil, pouco corajosa e pouco leal. Semelhante atitude faz pensar na do avestruz que esconde a cabeça na areia para se safar do perigo... Há sociedades onde se faz o operário conhecer apenas os seus direitos. São más. Outras obras existem onde sob o ponto de vista da solução da questão social, talvez pouco melhores sejam”.

     No Congresso católico de Malines, realizando em 1864, houvera maioria para defender com o snr. Carlos Périn a doutrina do patrono e da caridade e rejeitar de resoluções do snr. Duepétiaux pedindo, não só que, mediante lei, se fixasse a idade mínima para admissão nas fábricas, se limitasse a 12 horas a duração da labuta quotidiana e para as mulheres se proibissem trabalhos subterrâneos, como também a regulamentação da higiene nas oficinas, a inspeção administrativa do trabalho e acordos internacionais para a unificação da legislação social.

     Infelizmente, vozes como as de De Jaer e Ducpétiaux, durante demasiado tempo, elevaram-se no deserto.

     Mais atendido não fora um grande orador francês, o snr. Ugustin Cochin, quando no Congresso de 1863 declarava: “Muitíssimas vezes os industriais incubem a caridade de completar os salários e preferem dar sob a forma de socorro o que o operário acharia mais digno e mais seguro receber em pagamento”.

     No capítulo do Tomo II da História da Bélgica Contemporânea, consagrado à história social do nosso país (5), o professor Defourny recorda que no mesmo ano de 1864 um grande industrial de Gand, blasonado progresso e filantropia, jactava-se de haver reduzido a tarefa das crianças a 12 horas por dia e com isso auferir produção tão vantajosa quanto os seus concorrentes que mantinham a duração de 14 horas. Parecia-lhe, contudo, que 12 horas de trabalho eram o mínimo abaixo do qual não se deveria cogitar de descer.

 

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     Liga Democrática Belga, fundada em princípios de 1891, começou por agrupar algumas organizações esparsas nos principais centros operários. O conjunto das resoluções votadas pelos seus congressos anuais constitui um programa social completo que, nas linhas essenciais não diverge do adotado pelos católicos sociais e de outros países.

     Os dirigentes mais autorizados do movimento democrático cristão foram então os snrs. Helleputte, Verhaegen, Kurth, o padre Pottier, de Ponthière, Léon Mabille, Levie, Victor Delporte, Eylenbosch e simples operários, dos quais o mais influente era o tecelão Bruggeman, de Gand. Os seus nomes ficaram gravados na memória grata dos trabalhadores cristãos. Todos sabiam ser sustentados por Mons. Doutreloux e Stillemans, bispos respectivamente de Liège e de Gand.

     As reformas sociais que preconizavam, pouco diferem das que defendia a revista francesa “L’Association Catholique”. Podem ser reduzidas a quatro idéias fundamentais: condenação do regime individualista fundado na pretensa liberdade do trabalho; organização profissional ou corporativa e internacional; repressão da usura e dos abusos do capitalismo sob todas as suas formas.

     A estas indicações sumárias seja-nos permitido ajuntar o que escrevemos, em 1899, ao sair da Universidade, na tese doutoral consagrada às greves dos mineiros e à ação socialista. Essa página parece-nos apresentar algum interesse porque relata as impressões dum estudante da Universidade posto pela primeira vez em contato com a realidade:

     “Custa-se a imaginar na hora atual, apesar dos motins sangrentos que acompanharam as greves nas minas de carvão, quanto ódio e quanta sede de vingança apoderavam-se dos mineiros quando os oradores dos meetings lhes faziam passar pelos olhos, exagerando-os, o lúgubre cortejo dos incríveis abusos revelados pelos inquéritos privados e oficiais: depauperamento do corpo pela demasiada duração dum trabalho quase ininterrupto; embrutecimento do espírito por falta completa de educação e instrução profissional, tornada inútil em muitas profissões pela introdução do trabalho parcelar; trabalho nos domingos; trabalho à noite; trabalho das crianças e das mães; locais estreitos, baixos mal arejados, ora superaquecidos, ora frios e úmidos; alimentação deficiente; salários por vezes irrisórios, pagos irregularmente e desfalcados por frequentes multa e retenções consideráveis e arbitrárias: obrigação de se abastecerem a preços usuários nas casas dos contra-mestres; quase nenhuma regulamentação fixas das condições do trabalho; ausência quase total de várias precauções elementares contra acidentes, tanto mais numerosos por serem ainda muito imperfeitas as instalações; abandono frequente dos feridos, doentes e velhos, consequência fatal da inexistência de qualquer organização de seguro ou de caixas de pensão e aposentadoria; abusos desenfreados dos sub-contratos e do regateio; aglomeração de famílias numerosas em casebres miseráveis, por vezes infectos.

     A tudo isto juntai o isolamento do operário e a sua impossibilidade de agir em razão do desaparecimento de uniões profissionais legalmente constituídas; a ausência, muitas vezes, quase completa de relações diretas entre operários e industriais; esquecerem-se os ricos dos encargos da propriedade; enfim, e sobretudo, a sufocação, em muitos operários, de crença numa vida futura, deixando-os sem aquilo que a esta vida pode dar um sentido, tirando-lhes coma esperança todo o freio moral para que na sua existência empanada e aviltada não vejam senão um curto parênteses entre dois nadas.

     Ao proletário agro por tanta amargura vinde agora pintar, em traços impressionantes e à vontade enegrecidos, o contraste exasperador entre a sua miserável vida e a opulência requintada de “parasitas fartos”; dizei e repeti que a causa única de tudo isto é o egoísmo cínico de patrões açambarcadores; afirmai ser, no entanto, o trabalho dele a fonte única de fortuna do rico; descrevei-lhe o abuso como inerente essencialmente ao uso, o mal-estar transitório como um mal inelutável; pregai-lhe a teoria da luta das classes... e perguntai-vos se esse operário, a quem repetem periodicamente tais coisas, não está fatalmente destinado a se tornar um revoltado...” (6)

 

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Tudo quanto acabamos de lembrar em nada altera o fato de, durante longos anos, os católicos sociais não terem sido acompanhados pela maioria dos seus correligionários. Aos católicos belgas, considerados no seu conjunto, será aplicável este asserto de Pio XI: “As diretrizes tão autorizadas de Leão XIII quebraram as oposições e desarmaram as desconfianças”?

     É certo que no seio de vários grupos intelectuais e nos meios operários a Encíclica “Rerum Novarum” retiniu profundamente, mas é preciso também reconhecer a alhures se organizou a seu respeito uma espécie de conspiração do silencia.

 

 

(1)    Cf. Léon Grégoire, Le pape, les catholiques et la question sociale. Paris. 1907, 4e. éd., p. 20.

(2)    L’Association Catholique, Année 1881, T. II, P. 325, Cf. Guitton, 1891, Une date dans l’histoire des Travailleurs. Paris, Ed. Spes, 1931.

(3)    Guitton, op. Cit, p. 57.

(4)    Cf. Nitti, Le socialisme catholique, Paris, Guillaumin, 1894, ch. XI.

(5)    Bruxelles, Dewit, 1929, p. 272.

(6)    Nos greves houlleres et l’Action Socialiste, Bruxelles, Goemare, 1900, p. 324.
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Agradeço à Maria Aparecida por me ajudar na digitação.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Condenação a qualquer apelação às decisões papais



EXECRABILIS

PÍO II
Bula sobre la condena cualquier apelación a las decisiones papales
Del 15 de febrero de 1460

1. Un execrable, y en pasadas épocas inaudito abuso, ha surgido en nuestro tiempo, especialmente porque alguna gente, imbuída con el espíritu de rebelión, se atreve a apelar a un futuro concilio del Romano Pontífice, el Vicario de Jesucristo, a quien fue dicho en la persona del bendito Pedro "apacienta mis ovejas" y "todo lo que atares en la tierra, también será atado en los Cielos"; ellos no obran así porque estén ansiosos de obtener un juicio ortodoxo, sino para escapar de las consecuencias de sus pecados, y todo el mundo que no sea ignorante de las leyes puede darse cuenta de cuán contrario es esto a los sagrados cánones y cuán perjudicial a la comunidad Cristiana.

Porque, -haciendo caso omiso de otras cosas que están muy manifiestamente opuestas a esta corrupción- ¿quién no lo encontrará ridículo, cuando las apelaciones son hechas para lo que no existe y para el tiempo de cuya futura existencia nadie conoce? Los pobres son oprimidos de muchas maneras por los más fuertes, crímenes permanecen impunes, la libertad es concedida a los delincuentes, y toda disciplina y orden jerárquico está confundido.

2. Deseando en consecuencia, rechazar de la Iglesia de Cristo este veneno pestilente, para cuidar de la salvación de todos aquellos que han sido encomendados a Nos, y para mantener fuera del redil de Nuestro Salvador toda causa de escándalo, Nos, por consejo de todos los prelados y jurisconsultos de las leyes divinas y humanas, apegándonos a la curia y en el terreno de nuestro seguro conocimiento, condenamos esta clase de llamamientos; y Nos, les denunciamos como erróneos y detestables; les invalidamos y les anulamos completamente en el caso de cualquier apelación que pueda ser descubierta, además de la existente presente; y Nos, declaramos y determinamos que ellos son como algo inválido y pestilente, de ninguna significación.

Consecuentemente, Nos, ordenamos que nadie se atreva bajo ningún pretexto a hacer apelaciones de cualesquiera ordenanzas, sentencias o mandamientos, a Nos o a aquellos que nos sucedan, o a adherirse a tales apelaciones hechas por otros o a usarlas de cualquier manera.

3. Si alguien de cualquier posición, rango, orden o condición que aún si estuviese revestido de la dignidad Imperial, real o Papal, contraviniera posterior al tiempo de dos meses después de la publicación de esta Bula por Cancillería Apostólica, él habrá ipso facto incurrido en sentencia de anatema, de la cual no podrá ser absuelto más que por el Pontífice Romano y al momento de la muerte. Una universidad o una corporación será sujeta de interdicción; no obstante, corporaciones y universidades, como antes dicho y cualesquiera otras personas incurrirán en aquellas penalidades y censuras de los ofensores que han cometido el "crímen laesa maiestatis" y de los promotores que se conozca hayan incurrido en tales depravaciones heréticas.

Además, los escribanos y testigos que hayan atestiguado actos de tal naturaleza, y en general, todos aquellos que hayan con conocimiento prestado consejo o ayuda o favorecido a los tales apeladores, serán castigados con el mismo castigo.

Por tanto, no es permitido a ningún hombre el infringir o el oponerse audazmente por perversión, al carácter de esta voluntad Nuestra, por la cual hemos condenado, reprobado, derogado, anulado, decretado, declarado y ordenado lo antes dicho. Mas si alguno, sin embargo, así lo intentara, sépase que incurrirá en la indignación de Dios Todopoderoso y de Sus Apóstoles los Santos Pedro y Pablo.

Dado en Mantua, en el año de 1460 de la Encarnación del Señor, en el día 15 antes de las Kalendas de febrero, en el segundo año de Nuestro Pontificado. Pío II.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Razão de que a Sagrada Escritura seja obscura. Confusão das interpretações heréticas

                               




Fragmento 118

São Francisco de Sales
É coisa muito certa que as Sagradas Escrituras contenham com muita claridade a doutrina necessária para vossa salvação, e que bom método de interpretá-la é concordar umas páginas com as outras e reduzir o todo à analogia da fé. Assim se tem recomendado sempre. De todos os modos, não deixo de crer muito convencido e de dizer constantemente que, apesar da admirável e amável claridade da Escritura nas coisas necessárias, o espírito humano não acerta sempre com seu verdadeiro sentido, e pode equivocar-se.
Com efeito, erra muito frequentemente na compreensão dos parágrafos mais claros e mais necessários para fundamentar a fé, como demonstram os erros luteranos e os livros calvinistas que, sob a direção dos padres da pretendida reforma, sempre vivem em irreconciliável contenda sobre a interpretação das palavras com que foi instituída a Eucaristia. Gabam-se de haver estudado cuidadosamente e fielmente o sentido dessas palavras pela relação que tem com outras passagens da Escritura, submetido tudo ele à analogia da fé, mas seguem interpretando diversamente textos de grande importância.
A Escritura é clara em suas palavras, mas o espírito humano é obscuro e, como a coruja, não pode ver a claridade. O procedimento indicado resulta excelente, mas o homem não sabe aproveitar dele. O espírito de Deus nos tem dado a Escritura, e nos revela seu verdadeiro sentido, mas só a sua Igreja, coluna e apoio da verdade; Igreja cujo ministério o espírito divino guarda e mantém sua verdade, isto é, o verdadeiro sentido de sua palavra; Igreja, enfim, que é a única que conta com a assistência do Espírito da verdade para encontrar adequada e infalivelmente a verdade na palavra de Deus. O que busca a verdade da palavra divina fora da Igreja, que é sua custódia, nunca a encontrará; e o que quer possuí-la por meio distinto ao de seu ministério, em vez desposar-se com a verdade, o fará com vaidade; ao invés de possuir a claridade do Verbo sagrado, seguirá as ilusões do anjo mentiroso, que se transfigura de anjo de luz.
(Extr.:  Obras Selectas de San Francisco de Sales, II, p. 752, Madrid, 1954)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Salvação 'fora' da Igreja e jogos

                                 


PERGUNTA

 
Nome*:Fernada
E-mail*:xxxxxxxx@hotmail.com
Assunto*:Dúvidas
Mensagem*:Bom dia.
Primeiramente , queria pedir desculpa pelo número de dúvidas que eu tenho e se elas parecem infantis, contudo são coisas das quais eu preciso saber uma resposta porque elas estão martelando na minha cabeça já há algum tempo. Agradeço desde já se puderem me enviar alguma resposta e não precisa ser de todas as perguntas.
Gostaria de saber se jogos de vídeo games, RPG's, desenhos animados ou qualquer outro de tipo de entretenimento que envolve mundo de fantasia que contém magia e criaturas como monstros, fadas, vampiros , bruxas, magos, zumbis etc, são considerados pecados mortais? Quem os joga ou assiste está condenado pela Igreja?
Há um limite para o que o cristão imaginar, quero dizer, criar estes mundos e entidades imaginários também consiste numa conduta herética e só podemos usar a nossa mente para imaginar determinadas coisas? Pessoas de religiões pagãs , mesmo praticando boas ações estão condenadas ao inferno por causa que suas crenças ou práticas que são contrárias a doutrina cristã?


 
RESPOSTA
 
Cara Fernanda, muito lhe agradeço pela confiança. Achei muito interessantes suas questões, a primeira é bem nova, eu mesmo nunca tinha meditado muito sobre ela, a segunda já é de bem mais fácil resposta. Sobre a primeira mesmo eu não lhe negando resposta seria preferível tu procurares um padre ou bispo para melhor atendê-la, não acho que minha opinião leiga de um tema tão pouco falado valerá tanto ao ponto de cessar as batidas do martelo em sua cabeça. :) De qualquer modo é óbvio que isso nunca foi condenado pela Igreja, e, portanto, não poderia ser uma conduta herética como você cogitou em hipótese. Agora, se é pecado é outra coisa, pois não precisaria duma condenação Dela (da Igreja) para sê-lo, basta ser contra o amor de Deus ou do próximo. Em suma o que eu penso: Não acho que seja pecado em todo caso: A imaginação e o entretenimento são próprios e naturais no homem. Veja que O Senhor dos Anéis, por exemplo, é recomendado por muitos bispos e padres e do Vaticano só vieram elogios. Aliás, o Padre Paulo Ricardo tem até um vídeo em que explica muita da simbologia do romance. Quanto ao jogo como qualquer jogo tem uma finalidade, fases a passar, dificuldade, etc. seria de bom-senso ver se esse fim não é perverso, contrário à fé, moral, costumes, etc. Por exemplo, jogar GTA, fazendo papel de um gangster que sai matando pessoas do nada, tendo relações com prostitutas, correndo de policiais, obviamente, não é indicado. Essas simulações de tantos pecados vão contra a caridade. Agora, jogar um jogo que tenha simplesmente um mundo mágico de monstros não tem mal em si. Mais um exemplo, jogo de guerra defendendo à Santa Igreja parece até salutar. Hehe... Enfim, há jogos e jogos, basta discernir.

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Sua outra questão é a que segue: “Pessoas de religiões pagãs , mesmo praticando boas ações estão condenadas ao inferno por causa que suas crenças ou práticas que são contrárias a doutrina cristã?”

A resposta é que não necessariamente. Se esses pagãos estão sem má fé, ou seja, por ignorância, fora da estrutura visível da Igreja não há culpa em relação a isso, mas note esta ignorância tem que ser invencível. O Catecismo de São Pio X responde claramente essa indagação, vejamos:

“170) Mas quem se encontrasse, sem culpa sua, fora da Igreja, poderia salvar-se?

Quem, encontrando-se sem culpa sua - quer dizer, em boa fé - fora da Igreja, tivesse recebido o batismo, ou tivesse desejo, ao menos implícito, de o receber e além disso procurasse sinceramente a verdade, e cumprisse a vontade de Deus o melhor que pudesse, ainda que separado do corpo da Igreja, estaria unido à alma dEla, e portanto no caminho da salvação.”

 
Eis o mínimo necessário para “agradar a Deus”, logo para se salvar, como nos explica o Pe. Penido:

“1º Crer na existência de Deus uno: S. Paulo condena inexoravelmente a idolatria, pois a simples reflexão sobre o mundo criado leva ao conhecimento do Criador (Rom 1,20; At 14, 16).

2º. Crer no Deus remunerador: é a garantia da vida moral e religiosa. Querer “agradar” ou “buscar” a esse Deus – como diz o texto sagrado – é procurar servi-lo, orientando a própria vida em função de Deus.

Apliquemos agora esta doutrina revelada ao caso do pagão que, sem culpa sua, escapa à pregação evangélica. Como há de a graça divina alçá-lo à fé sobrenatural no Deus uno e galardoador?

Dependerá, é certo, das almas individuais, das circunstâncias de meio e tempo. Por vezes, a graça há de servir-se de restos da revelação, mais ou menos deformados, no seio dos cultos pagãos. Já no século III, Minúcio Félix explicava que o Deus verdadeiro pode ser honrado ainda que sob um falso nome: “os que fazem de Júpiter o Senhor enganam-se de nome, porém reconhecem conosco um único Poder supremo” (Octavius, c. 18)

De fato, os estudos contemporâneos de etnologia mostram a persistência, no seio das civilizações as mais diversas, as mais primitivas, da crença num Deus supremo. Os vários deuses são amiúde considerados como atributos da divindade, ou ministros dela, e os ídolos como puros símbolos ou imagens. ...

Poderá também se evidenciar o “testemunho da consciência natural cristã” ao qual já apelava Tertuliano. A experiência da vida moral, por exemplo, levará o homem – sob a orientação da graça – a conhecer Deus como legislador. O remorso por suas fraquezas despertará sentimentos de contrição, um apelo ao Deus libertador.

Outras vezes ainda será inspiração secreta da graça, iluminação reveladora. De qualquer forma o pagão de espírito reto, que acredita em Deus e procura servi-lo o melhor possível, segundos as luzes recebidas do Verbo que “ilumina a todo homem que vem ao mundo” (Jo 1, 9), esta não será condenado.” (Iniciação Teológica, Vol I, O Mistério da Igreja, pág. 173-174)

É importante trazer presente a verdade da necessidade da crença em um único Deus,  ao contrário do que diz a cultura pós-moderna. Este mesmo Deus é um Justo retribuidor, que não permitiria alguém ficar privado do conhecimento necessário à salvação. Enviaria até um anjo para ensinar se necessário.

Finalizemos com São Justino

“os que viveram segundo o Verbo, são cristãos, ainda que tenham passado por ateus, como Sócrates, Heráclito e seus semelhantes.” (Apol.,  46.)

 
Espero ter sido claro.

 
Em Cristo,

Nelson Monteiro.

 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Prova pelos graus de perfeição dos seres


Santo Tomás tira essa prova a partir da Metafísica de Aristóteles. A primeira premissa para entendê-la é a seguinte: as coisas ao máximo verdadeiras são também entes ao máximo (II Metafísica 993b; Cmt2, 295ss). A segunda premissa, também tirada de Aristóteles, é que por haver duas coisas falsas sendo uma mais que outra, deve haver também uma mais verdadeira que a outra, conforme participe mais perfeitamente daquilo que é simplesmente verdadeiro.

O filósofo Aristóteles diz nestas palavras:

“E o que pensa que quatro e cinco são a mesma coisa, não teria um pensamento falso de grau igual ao do homem que sustentasse que quatro e mil são idênticos. Se há diferença na falsidade, é evidente que o primeiro pensa uma coisa menos falsa. Por conseguinte está mais no verdadeiro. Logo se o que é mais uma coisa, é o que se aproxima mais a ela, deve haver algo verdadeiro, do qual será o mais verdadeiro mais próximo.” (IV Metafísica 4)

Destas, infere Santo Tomás no segundo modo:

“Ora, o mais e o menos se dizem de diversos atributos enquanto se aproximam de um máximo, diversamente; assim, o mais cálido é o que mais se aproxima do maximamente cálido. Há, portanto, algo verdadeiríssimo, ótimo e nobilíssimo e, por conseqüente, maximamente ser; pois, as coisas maximamente verdadeiras são maximamente seres, como diz o Filósofo. Ora, o que é maximamente tal, em um gênero, é causa de tudo o que esse gênero compreende; assim o fogo, maximamente cálido, é causa de todos os cálidos, como no mesmo lugar se diz. Logo, há um ser, causa do ser, e da bondade, e de qualquer perfeição em tudo quanto existe, e chama-se Deus.” (ST I, q. 2, art. 3)

Explicação:

A gradação de perfeições entre os seres só é possível se há um Ser que existe em si e por si, e que possua por essência todas as perfeições. Não se diz que algo é mais ou menos alguma perfeição ou qualidade se não por relação. Para compararmos uma coisa a outra devemos ter em mente algo que seja a perfeição comparada de modo máximo, isto é, no maior grau de perfeição, senão tal ideia seria inconcebível.

Se as qualidades existem em diversos seres segundo graus diversos, é necessário que ela seja produzida por uma causa única, caso contrário, não seria possível que esta qualidade comum a seres múltiplos e diversos pertença a estes seres em razão de sua própria natureza, pois não seria inteligível que estas qualidades se encontrassem neles, ora em maior, ora em menor quantidade.

Eles seriam estas qualidades por sua própria essência, logo necessariamente as teriam perfeitas, isto é, sem restrição e limite. O fato de haver diversos graus entre os seres implica que esses mesmo seres não as tenham por si, mas participem de uma Perfeição absoluta e infinita, acima desta hierarquia de perfeições. E como lemos mais acima, o que é maximamente perfeito é causa e razão de tudo que compreende qualquer atributo.


Este argumento se aplica a todas as perfeições ou qualidades que se possa levar ao absoluto: Ser, unidade, verdade, bondade, inteligência e sabedoria. Aqui não falamos de Beleza e Bondade ideais, mas de Beleza e Bondade subsistentes.

Em suma: Estabelecido que os seres possuem graus distintos de perfeição não podem ter em si a razão última desta perfeição e esta não pode explicar-se senão com a existência de um Ser que a possui absolutamente e essencialmente, comunicando ao resto, e estes possuindo por participação. Logo, concluímos a existência de um “ens perfectissimum”, Deus.

Entendemos com isso a própria definição de filosofia (amizade com a sabedoria), vinda de Pitágoras, o filósofo é amigo da sabedoria, já que só Deus é Sábio, segundo ele. Também compreendemos porque Jesus disse que “só Deus é bom” (Mc 10, 18). De fato, como nos ensina Santo Tomás “os efeitos mais imperfeitos que as suas causas não convêm a elas no nome e no conceito, mas há necessidade que haja entre ambos alguma semelhança, por caber à natureza da ação produzir efeitos que lhe sejam semelhantes, visto que cada coisa opera enquanto está em ato.” (Suma Contra Gentios, Livro I, cap. XXIX, 1)

Quando Moisés quis ver Deus face ou a glória divina (Ex 33,13), o Senhor respondeu-lhe “Eu te mostrarei todo o bem” (Ex 33,19), ou seja, dá Ele a entender que Nele está a plenitude de toda a bondade.

Testemunhos dos Pais da Igreja:


Sigo com os trechos de alguns Pais da Igreja sobre a perfeição de Deus:

Santo Irineu de Lião (130 - 202):

“Deus é perfeito em todas as coisas, sempre é igual e semelhante a si mesmo, porque todo Ele é luz, mente, substância e fonte de todos os bens; enquanto que o ser humano recebe-O vai aproveitando e crescendo para Deus. Da mesma maneira como Deus é sempre o mesmo, assim também o homem que se encontra em Deus, sempre irá crescendo para Ele.” (Adv. h. 4, 11,2)

São Cirilo de Jerusalém (315 – 386):

“Ele é perfeito em tudo e em toda espécie de perfeição no mesmo grau” (Cat. 4,5)

São Gregório Nisseno (335 – 395):

“Sendo Deus, segundo sua natureza, infinito, não pode ser compreendido e expresso com palavras” (C. Eunom. 3, Migne, 45, 601)
Santo Ambrósio (340 – 397):

“Deus autem justus per omnia, sapiens super omnia, perfectus in omnibus” (De off. 3, 2, 11, Migne, 16, 148).

Santo Agostinho (354 – 430):

“Deus autem Nec modum habere dicendus est, Nec finis ejus dici putetur” (De Nat. Boni, 22, Migne 42, 558)

São Cirilo de Alexandria (375 - 444):

“A divindade possui em si toda espécie de perfeição e nada lhe falta.” (De s. Trin. Dial. 1, Migne, 75, 673)

Conclusão

Esta prova, apesar de esquecida, é ainda viva na apologética. Talvez seja a mais complicada para aqueles que ignoram alguns princípios básicos da filosofia. Apesar de ser “Deus incomprehensibilis” (Later. IV, Vatic. Denz. 428, 1782) sua existência não é, pois chegamos ao conhecimento da causa a partir de seus efeitos.

Além disso, já que a existência e a essência em Deus são inseparáveis, do conhecimento Dele e de sua revelação, já podemos ter certa ideia do seu Ser, que claro nunca é completa. Como diz Santo Tomás: “Embora por revelação da graça não conheçamos nesta vida a essência de Deus e neste sentido unimo-nos a Ele como a um desconhecido (quase ignoto), todavia, conhecemo-lo de um modo completo enquanto nos são revelados mais numerosos e mais excelentes efeitos de seu poder, enquanto, graças à revelação, atribuímos-lhe algumas perfeições, cujo conhecimento a razão natural não poderia alcançar” (S. th. I, 12, 13 ad 1).

Vários sistemas e pensadores contribuíram para o enfraquecimento do uso das provas da existência de Deus. O primeiro que devemos lembrar é o protestantismo que trouxe o fideísmo, Deus seria simplesmente uma questão de fé, nega-se toda a tradição cristã sobre isso. Outro é o modernismo com o seu agnosciticismo, tomado de Kant (Denz. 2072-2073). Contra essas duas tendências, a de Lutero e Kant, dirigi-se a definição do Concílio Vaticano I.

Também o tradicionalismo que para combater as objeções da razão, apega-se a um meio radical, negando à razão a capacidade de julgar nestas matérias, fundando-se apenas na tradição da Revelação sobrenatural (Bonald, Bautain, Lamennais). Este tradicionalismo rígido foi condenado pela Igreja (Denz. 1617).

Por fim, termino com Maurice Blondel:

“Há diversas formas e causas de ateísmo. Há o ateísmo dos que não sabem discernir e denominar o hóspede interior, a luz inevitável, “que ilumina a todo homem que vem a este mundo”. Mas na proporção em que não “pecam contra esta luz” eles servem ao “Deus desconhecido”; e a etiqueta de ateu não passa disso. Há o ateísmo dos que diante das ideias deficientes de Deus, que lhes são apresentadas, ou ante dos abusos às vezes monstruosos, que se fazem das falsas concepções de Deus, rejeitam os ídolos e as supertições.

O ateísmo destes é uma homenagem inconsciente a um ideal mais elevado, a uma aspiração que pode ser piedosa sob as aparências de impiedade. Há o ateísmo daqueles que conhecem bastante o verdadeiro Deus e as próprias paixões para não querer que Ele seja o que é; esta é uma homenagem involuntária àquele que odeiam, julgando negá-lo.

Mas também aqueles que estão mais certos de Deus que de si mesmos e do mundo e estão convencidos de que na medida em que Ele é ignorado, a humanidade inteira é ameaçada de ruínas e de corrupção, quanto devem fazer constantemente para evitar a censura: “Há no meio de vós alguém que não conheceis!”. As desconfianças, as objeções, as dúvidas, as hostilidades contra Deus nascem em grande parte das ideias falsas que dele se fazem” (La pensée, vol II, PP. 393-394. Paris 1934)

Referências:

Teologia Dogmática, Revelação e Fé, Deus, a Criação - Bernardo Bartmann

Curso de Filosofia – Régis Jolivet

Suma Contra os Gentios - Santo Tomás

PARA CITAR ESTE ARTIGO:

Nelson M. Sarmento, Prova pelos graus de perfeição dos seres, Porto Alegre, julho de 2012, blogue Apostolado Tradição em Foco com Roma.
 
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